segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Arte: livros-objetos e livros-imagem

Acho que é de conhecimento de todos que o mercado editorial está direcionado a divertir as crianças com livros-objetos... barulhentos, coloridos, permeáveis, desmontáveis... um monte de treco! sim, livros-trecos que depois de uma semana se entulham, quebram... e histórias pouco contam.

Mas eis que, por outro lado, os livros infantis tem maior pré-disposição a se tornarem objetos de arte. É inegável!  O mundo da literatura para crianças também comprova que nem tudo na vida, relacionado ao prazer, deve estar atrelado à diversão...

Imagens saltam das páginas em delicadas dobraduras de papel, com sofisticada "tecnologia" 3d. Saindo da linha livro-brinquedo, as dimensões em papel fazem parte do mundo da literatura infantil com ilustrações originais e extremamente belas, com imagens móveis surgidas literalmente das páginas de um livro.

É o exemplo da adaptação em quadrinhos em versão pop up de Moby Dick, publicada pela Publifolha. Sem questionar o valor literário da edição, podemos dizer que este livro é sim um objeto de arte.


Outros exemplos também encontramos em livros que nos permitem manipular a história, fazendo-nos intergir com as mãos, como nos livros de Janet e Allan Ahlberg, lançados pela Cia das Letrinhas, "O Carteiro Chegou" e "O Natal do Carteiro". Encontrei na internet um blog (veja aqui) com um relato bem legal sobre a experiência de leitura desse último livro. Tirei de lá essas imagens:

 

E não é apenas a experiência manual de leitura que identifica a verdadeira preocupação com a estética do livro-objeto. O design gráfico dos livros, o tipo de papel, a costura, tudo tende a ser mais elegante nas melhores edições de livros infantis... Casos em que a história é pouco interessante perto das ilustrações. Ilustrações que, se por um lado limitam o exercício da imaginação, por outro são um aprazível encanto visual de cores e traçados, verdadeiros "quadros" e pinturas de arte, dignos de serem emoldurados...

Minha última descoberta, quero dizer "a preferida", foi a ilustradora Suzy Lee (veja a trilogia sem palavras: "Onda", "Espelho", "Sombra" aqui)... uma sul-coreana cujos desenhos são fascinantes e constroem uma narrativa poética que nos permite experimentar o livro como imagem, puramente... num lirismo que (con)figura a simplicidade e a riqueza num jogo de cores e sentidos, num contraponto entre as páginas da esquerda e da direita e também entre nós leitores (leitores?) e a menina-personagem que nos encanta.
É apaixonante!

domingo, 27 de novembro de 2011

O cinema com Selton Mello

 Em 2008, Selton Mello me surpreendeu com Feliz Natal, abusando de Cassavettes e criando um filme cujo desempenho atinge a perfeição, mas que, de alguma forma, não me satisfaz dizê-lo "bom".
Para ser mais sincera, em minha memória há apenas omissões sobre cenas, roteiro, atores...
Lembro-me apenas de Darlene Gloria se (con)fundindo com Gena Rowlandse...
Uma cena inicial com pessoas fazendo sexo - cena que me remete a Árido Movie... Um ferro velho...Vidro quebrado..., cenários da decadência humana... ou isso era em O Pântano de Lucréia Martel?

Associações ou remediações de uma pouca memória, o fato é que as grandes paráfrases tornaram-se meras coisas referidas.
Em Feliz Natal tudo era bom, estruturalmente falando. O impacto primeiro foi nossa!, Selton Mello sente o cinema... Mas logo em seguida veio uma sensação de exagero... e a pergunta: cadê o diretor?

Resumo a experiência que tive em Feliz Natal como um  trauma de uma fã frustrada.


Há quase duas semanas atrás, fui ao cinema assistir ao Palhaço. Não fazia ideia do que seria ir a essa sessão. Com poucas expectativas, apostei numa segunda experiência com Selton Mello na direção... Mas dessa vez ele estava também diante das câmeras, do modo como eu prefiro.

Das reações primeiras, fiquei encantada com a proposta de beleza que já vinha acompanhando desde a publicidade do filme... (acredito que a magia do título, por si só, carrega consigo uma poética natural, ainda que por vezes a figura de um palhaço possa estar associada a outras imagens que não sejam propriamente circenses).

Simultânea ao encanto, conforme sequenciava-se o filme, seguia comigo uma apreensão relativa a prévios conceitos e as associações aos picadeiros de Charles Chaplin e de Fellini, apreensão substituída por uma surpresa-implicância na atuação de Selton (que de certo modo não me pareceu copiosa, mas sim forçada sob uma caricatura melancólica exagerada).

O personagem Benjamin está entregue ao ermo da alegria, encenando para nós (espectadores do filme) e para os que com ele convivem (espectadores do dentro-fora do circo) a sensação de um palhaço que está distante de seu próprio universo - eis o esteriótipo do palhaço triste, que busca o sentido do próprio riso.
Os rumos que segue Benjamin são literalmente as estradas de sua vida, que o fazem duvidar entre o vestir e o tirar o nariz de palhaço (a máscara, a persona, o alter-ego), de modo a questionar qual é a sua identidade.

(Um parágrafo-parêntese:
Curioso e impossível não relacionar a questão identitária do personagem à questão autoral do filme. E volto a indagar-me: que identidade busca registrar Selton Mello diante de si e do cenário fílmico brasileiro? ...
Me parece que o diretor gosta dos seres solitários... da procura pelo entendimento do homem no (seu) universo... Procurou isso no drama e, agora, procura na comédia.)

Desde Feliz Natal, marcas de outros cineastas apresentam-se como fundação de toda a linguagem que a câmera de Selton Mello objetiva. Se no primeiro filme as influências ultrapassam os limites de uma possível "tradução cinematográfica" e atingem a livre transcrição, em O Palhaço o diretor consegue retratos daquilo que quer expressar, mediante à sensibilidade e à admiração aos grandes cinemas, que visivelmente tornam-se presentes no seu ato cinematográfico (ainda que numa contínua absorção de identidades).

Porém, nessa segunda experiência, já nem sei se por condescendência, ou por adoração ao sorriso do ator  e aos traquejos cômicos que lhes são próprios do charme (RISOS), vejo em O Palhaço a partida para a consistência daquilo que Selton Mello quer em sua direção, pois ele consegue nos atingir tanto pelo prazer estético, quanto por um prazer hedonista... sem que os clichês distorçam a própria "funcionalidade" do filme.

O desfecho d'O Palhaço é costurado a todos os "retalhos"* do filme (diálogos entre os personagens, cenas mudas, fotografias da expressão e impressão de personagens, imagens-símbolos que atingem significação, etc). Difícil não ser contagiado pela história, pelos detalhes bem cuidados, figurinos, atuação, participação e gags de grandes e médios atores... além do roteiro bem escrito. Tive uma segunda experiência bem mais satisfatória!

Concluí que a direção de Selton Mello está aí como uma incógnita sobre quem ele é, quem é o cinema brasileiro e quais são os rumos dessa indagação por uma alteridade.
Acredito que o perigo de suas incursões em outros cinemas é também a coragem de ser quem não é, para tentar ser alguém ou a si mesmo.
Desejo apenas que ele esqueça os caminhos da linguagem que o acompanha e siga a intuição da solidão errante, manifesta em seus próprios personagens... tendo em vista que a arte não chega a lugar nenhum, pois não tem um objetivo determinado.

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* no texto original lia-se "remendos", mas a partir de uma re-leitura notei que o sentido que procurava era mais próximo se usado o termo "retalhos", ainda que este último não seja suficiente para dizer o que eu pretendia e, de certo modo, possa soar pejorativo (o que não é a intenção)  
atualização em 27 de nov às 16:46h

sábado, 26 de novembro de 2011

Sublinhando o livro: Nadja, de Andre Breton




No que me diz respeito, mais importantes ainda que o encontro de certas disposições de coisas para o espírito, me parecem as disposições de um espírito em relaçã a certas coisas, duas espécies de dispoisções que regem por si mesmas todas as formas da sensibilidade.
p. 25


Tenho a intenção de narrar, à margem do relato que vou empreender, apenas os episódios marcantes de minha vida tal como posso concebê-la dora de seu plano orgânico, ou seja, na própria medida em que ela está confiada aos acasos, dos menores aos maiores e, refugando a ideia comum que dele faço, introduzir-me num mundo como que proibido, que é o das aproximações repentinas, das petrificantes coincidências, dos reflexos que vencem qualquer outro impulso mental, de acordes batidos como no piano, de clarões que fariam ver, mas ver de fato, se não fossem ainda mais rápidos que os demais.
p. 27


Espero, de todo modo, que a apresentação de uma série de observações dessa ordem e da que se segue seja de natureza a precipitar alguns homens na rua, depois de tê-los feito adquirir consciência, se não do nada, pelo menos da grave insuficiência de qualquer cálculo pretensamente rigoroso sobre si mesmos, de toda ação que exija uma aplicação permanente, e possa ter sido premeditada. De nenhum fato, por menor que seja, restará coisa alguma, se ele é verdadeiramente imprevisto. E não me venham depois disso, falar do trabalho, quer dizer, do valor moral do trabalho. Sou forçado a aceitar a idéia do trabalho como necessidade material, e nesse aspecto sou o mais favorável possível à sua melhor, à sua mais justa repartição. Que ele me seja imposto pelas sinistras obrigações da vida, vá lá, mas que me peçam para acreditar nele, reverenciar o meu ou o dos outros, jamais. Prefiro, de novo, caminhar na noite e pensar que sou aquele que caminha de dia. De nada serve estarmos vivos durante o tempo em que trabalhamos. O acontecimento que cada um de nós está no direito de esperar que seja a revelação do sentido de sua própria vida, acontecimento que eu talvez ainda não tenha encontrado, mas no caminho do qual me procuro, não virá ao preço do trabalho. Mas me antecipo, pois talvez seja aqui, acima de tudo, o que a seu tempo me fez entender e o que justifica, sem mais tardança, a entrada em cena de Nadja.
p. 62


O que Nadja faz em Paris, ela mesma se faz essa pergunta. Bem, à noite, lá pelas sete, ela gosta de estar num vagão de segunda classe no metrô. A maioria dos passageiros é gente saindo do trabalho. Ela se senta entre eles, procura descobrir no rosto deles o motivo de suas preocupações. Pensam necessariamente no que acabam de deixar até amanhã, só até amanhã, e também no que os espera à noite, algo que os desanuvia ou que os deixa ainda mais preocupados. Nadja fixa alguma coisa no ar: ‘Tem gente admirável’.


Mais emocionado do que gostaria de parecer, desta vez eu me zango: ‘Coisa nenhuma. Além do mais, não se trata disso. Essas pessoas não podem ser interessantes, já que suportam o trabalho, com ou sem todas as outras misérias. Como é que isso poderia elevá-las, se nelas a revolta, a mais forte, não está de todo? Naquele momento, eles estão sendo vistos, mas eles nem sequer a vêem. Odeio com todas as forças essa servidão que querem me fazer aceitar. Lamento que o homem esteja condenado a ela, que em geral não possa se ver livre dela, mas não é a dureza da pena que vai me dispor em seu favor: é, e só poderia ser, a veemência de seu protesto. Sei que no forno de uma fábrica, ou diante de uma dessas máquinas inexoráveis que impõem o dia inteiro, com alguns segundos de intervalo, a repetição do mesmo gesto, ou em qualquer outro lugar, sob as ordens mais inaceitáveis, ou na prisão, ou diante de um pelotão de fuzilamento, mesmo assim podemos nos sentir livres, mas não é o martírio que sofremos que cria essa liberdade. Eu quero que a liberdade seja uma permanente quebra de grilhões: contudo, para que essa quebra seja possível, constantemente possível, é necessário que as correntes não nos esmaguem, como fazem com muitos daqueles a quem se refere. Mas a liberdade também é, e humanamente  talvez ainda mais, uma sequência de passos mais ou menos longa, porém maravilhosa, que o homem pode dar fora dos grilhões. Acha que eles seriam capazes de dar esses passos? Terão pelo menos tempo para dá-los? Terão coragem suficiente? Pessoas admiráveis, me disse, está certo, admiráveis como aquelas que se deixaram matar na guerra, não é mesmo? Para encurtar, os heróis: são muitos infelizes e uns poucos imbecis. Quanto a mim, posso afirmar, esses passos são tudo. Aonde eles vão, eis a verdadeira questão. Acabarão por traçar um caminho, e quem sabe se nesse caminho não aparecerá o meio de libertar ou de ajudar a libertar os que não conseguiram seguir adiante? Só então será conveniente demorar um pouco, mas sem voltar atrás’. (Por aí se vê o que sou capaz de dizer sobre o assunto, por menos predisposto que esteja a tratá-lo de maneira concreta.) Nadja ouve sem tentar me contradizer. Talvez tenha querido fazer apenas a apologia do trabalho.
p. 68


A vida é diferente do que se escreve. Ela me retém por alguns instantes, para me dizer o que mais a atrai em mim. É, no meu pensamento, na minha linguagem, em todo o meu modo de ser, ao que parece, e este é um dos elogios que mais me sensibilizaram na vida, a simplicidade.
p. 70


Sinto, perto dela, que estou mais próximo das coisas que estão perto dela do que dela.
p. 86


"Não sou encontrável"
p. 89


"André? andré? ... Você vai escrever um romance sobre mim. Garanto. Veja só: tudo se esvai, tudo desaparece. É preciso que reste algo de nós... Mas isso pouco importa: você arranja outro nome: que nome, quer que eu diga, isso é muito importante. Tem que ser um pouco o nome do fogo, pois é sempre o fogo que aparece quando se trata de você. A mão também, mas é menos essencial que o fogo. O que vejo é uma chama que começa no punho, como aqui (com o gesto de fazer uma carta desaparecer) e que faz com que a mão se queimen e desapareça num piscar de olhos. Você vai encontrar um pseudônimo, latino ou  árabe. Promete. É indispensável."
p. 94


Ela repete várias vezes, escandindo cada vez mais as sílabas: "O tempo é implicante. O tempo é implicante porque tudo tem que acontecer na hora certa.".
p. 97


Poderia terminar aqui essa perseguição desvairada? Perseguição de quê, eu não sei, mas perseguição , para assim recorrer a todos os artifícios da seduçaõ mental. Nada - nem o brilho de metais incomuns como o sódio serem cortados - nem a fosforescência das pedreiras de certas regiões - nem o brilho do faiscar admiravel que sobe dos poços - nem o crepitar da madeira de um relógio de pêndulo que atiro ao fogo para que morra dando as horas - nem a atração a mais que o Embarque para Citera exerce ao verificarmos que, sob diversas atitudes, só um casal está em cena - nem a majestade das paisagens de represas - nem o encanto de minés, prédios em demolição: nada disso, nada do que para mim constitui minha luz própria, nada foi esquecido. Quem éramos nós diante da realidade, esta realidade que agora vejo deitada aos pés de Nadja, como m cão vadio? Em que latitude nós poderíamos estar bem, assim entregues ao furor dos símbolos, presas do demônio da analogia, nós que nos víamos como objetos de instâncias últimas, de atenções singulares, especiais? Vem daí o fato de que, projetados juntos, de uma vez por todas, tão longe da terra, nos curtos intervalos que o nosso maravilhoso esturpor permitia, termos podido trocar algumas impressões incrivelmente harmônicas por cima dos escombros fumegantes do velho pensamento e da vida sempiterna? Do primeiro ao ultimo dia tomei Nadja por um gênio livre, algo como um desses espíritos do ar que certas práticas de magia permitem fixar momentaneamente, mas jamais submeter.
p. 102

Seus olhos de avenca... (p. 102)
p. 104


"A garra do leão estreita o seio da vinha"
"Não sobrecarregar o pensamento com o peso dos sapatos"
p. 108


Era muito forte, afinal e muito fraca. como se pode ser, na convicção que sempre teve, e na qual a mantive por um tempo demais, ajudando-a demais, talvez, a avançar o passo: ou seja, que a liberdade, adquirida neste mundo ao preço de mil renúncias, as mais difíceis, exige que desfrutemos dela sem restrições enquanto nos for dada, sem consideração pragmática de nenhuma espécie, e isso porque a emancipação humana, concebida em definitivo sob a sua mais simples forma revolucionária, que não passa da emancipação humana sob todos os aspectos, entendamos bem, segundo os meios de que cada um dispõe, continua sendo a única causa digna a que servir.
p. 131


A bem conhecida ausência de fornteira entra a não-loucura e a loucura não me dispõe a conceder um valor diferente às percepções e idéias que são o fato de uma e de outra. Há sofismas infinitamente mais significativos e mais pesados que as verdades menos contestáveis: revogá-los por serem sofismas é ao mesmo tempo desprovido de grandeza e de interesse. Se eram sofismas, devo a eles pelo menos ter podido me lançar em mim mesmo, àquele que vem de mais longe a meu encontro, o grito, sempre patético, de "Quem vem lá?" Quem vem lá? É você, Nadja? É verdade que o além, todo o além esteja nesta vida? Nada escuto, Quem vem lá? Serei apenas eu? Serei eu mesmo?
p. 134

domingo, 23 de outubro de 2011

Um abraço de Sofia em Charlotte em mim



Há um ano esse personagem fala tanto, mas tanto sobre mim que eu me sinto dentro de um ficcionismo absurdamente poético e impassível de definições.
E isso é tão bom... Gosto de me vestir com a idéia de que esse filme é sobre um "nós" íntimo, fora do alcance e das pertubações do mundo que não nos pertence. Porque se perder traduzindo os sentimentos próprios nos faz construir um mundo paralelo. 


Não!.... Um mundo onipresente naquilo que realmente nos vale: o interior... 

Eu sinceramente não faço questão de definir, mesmo que precise, que sinta forte essa necessidade. No fundo eu só queria constatar... e sussurrar ao pé-do-ouvido do mundo que o que grita em mim não são esses murmúrios, é algo que a linguagem verbal não dominna. 

É só assim, no momento do cinema: eu ali, vendo, sentindo, observando, "fotografando"... muito indiferente aos sentidos estomacais da vida mundana, banal, cotidiana.
É algo muito além do coração... algo que respira.


A medida do que sinto é conforme  eu o interiorizo e trago... e exteriorizo apenas o que não me serve... O que fica, mesmo que seja ruim, jamais será cinza.

Gosto dessa cumplicidade do cinema bordando  as minhas cicatrizes, sem progressões... desconsiderando a distância tão próxima e vidente, e se alimentando da proximidade distante e ausente (à vista de outros)...
E o tempo, ah!, ele é delicadamente relativo, e nosso! Dura muito mais que o tempo de vida de um filme.


P.s: uma conversa de Mariana com o enaltecer de seu eu-lírico.
Texto escrito em 05 de Abril de 2008


Apesar das baboseiras que escrevi e dos sentimentos em 2008 (que hoje são outros), ainda sinto muito esse filme. É como um abraço, ou uma saudade. Valeu, Sofia!


quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Ana C.

{essa mulher fui eu, nascida em outra data}

olho muito tempo o corpo de um poema
até perder de vista o que não seja corpo
e sentir separado dentre os dentes
um filete de sangue
nas gengivas

ESTE LIVRO

Meu filho. Não é automatismo. Juro. É jazz do
coração. É prosa que dá prêmio. Um tea for two
total, tilintar de verdade que você seduz, charmeur
volante, pela pista, a toda. Enfie a carapuça.
E cante.
Puro açúcar branco e blue.

ATRÁS DOS OLHOS DAS MENINAS SÉRIAS
Aviso que vou virando um avião. Cigana do horário
nobre do adultério. Separatista protestante.
Melindrosa basca com fissura da verdade. Me
entenda faz favor: minha franqueza era meu fraco, o
primeiro side-car anfíbio nos classificados de
aluguel. No flanco do motor vinha um anjo
encouraçado, Charlie’s Angel rumando a toda para
o Lagos, Seven Year Itch, mato sem cachorro. Pulo
para fora (mas meu salto engancha no pedaço de
pedal?), não me afogo mais, não abano o rabo nem
rebolo sem gás de decolagem. Não olho para trás.
Aviso e profetizo com minha bola de cristais que vê
novela de verdade e meu manto azul dourado mais
pesado do que o ar. Não olho para trás e sai da
frente que essa é uma rasante: garras afiadas, e
pernalta.




domingo, 11 de setembro de 2011

Resenha: Avalovara, de Osman Lins

Osman Lins é autor de várias obras importantes para a Literatura Brasileira. Dentre elas, o romance Avalovara (1973) se destaca pela engenharia literária elaborada sobre uma espiral e um quadrado, traçados com base no palíndromo sator arepo tenet opera rotas. Numa analogia referente a própria construção narrativa, qualquer que seja o percurso de leitura o sentido da obra é o mesmo.

    

A história diz respeito a Abel, um homem que quer se tornar escritor e ao longo de sua trajetória se envolve com três mulheres: Annelise Ross, Cecília e uma terceira, representada apenas por um símbolo. Numa reciprocidade, os personagens atravessam uma rede complexa de questionamentos sobre liberdade, amor, tempo, entre outros temas que surgem numa sempre referência às oito pequenas narrativas que formam o romance, narrativas que descrevem uma órbita de reflexões sobre o mundo, entre aquilo que é humano ou divino, físico ou metafísico, cujo centro é Abel.

O experimentalismo formal da estrutura narrativa dá passagem da representação do plano psicológico para a exploração da linguagem no fluxo da prosa literária, de modo que a organização do romance revela-se como um recurso de Osman Lins para estabelecer uma relação narratária entre espaço e tempo que vai além da mera representação do real, pois define-se como uma simbologia para os questionamentos existenciais e a busca de uma identidade ou de uma resposta para Abel.
Essa relação narratária, entretanto, demonstra uma trajetória que só traz mais dúvidas e desterro (linguístico, espacial, temporal e sentimental) ao protagonista, ao invés de uma possível auto-compreensão de suas relações e das relações humanas de maneira geral.


O trajeto de Abel que se inicia de Pernambuco à Europa, finda-se em São Paulo, onde ele encontra a plenitude e o êxtase do amor e da criação.

 Trecho de Avalovara, N2, pag. 354
Transitamos entre nós, vamos de mim a mim eu eu nós eu eu de mim a mim, laço e oito, boca e boca, transitamos e somos, a esfera circunscreve-nos e nós próprios uma esfera, boca e boca (de quem?) coxas braços joelhos bunda orelhas (de quem?) membro garganta bainhas rorantes o prazer formando-se os culhões acesos cabeleiras ais. Relâmpagos arabescos convulsos lento rolar dos trovões estrondos dos trovões carradas de pedrouços entornados sobre lastro de madeira uma explosão atira-os para o ar a sala treme cintilam cristais lustres vidros caixilhos moldura nuvens de chuva açoitadas edifícios pára-raios antenas de TV.
Descrição presente na parte posterior da 5ªed:
Poema? Romance? Ensaio ficcional? Fábula metalingüística? Publicada em 1973, a obra máxima do pernambucano Osman Lins continua a instigar novos leitores. Livro único, que desafia os gêneros, Avalovara é, antes de mais nada, um mergulho vertiginoso no cerne da linguagem: lá onde os nomes fecundam-se mutuamente à espera de realidades que ainda não nasceram. Com habilidade magistral, que modula cada frase, cada som, Osman Lins intercala oito temas narrativos que atravessam tempos e espaços distintos, saltando de Amsterdam a Recife, de Recife à Roma Antiga, daí a São Paulo e vice-versa, formando um esplêndido conjunto, no qual o próprio livro, em sua concepção, tratamento e estrutura, torna-se uma imagem de totalidade, uma cosmogonia.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Mostra Hitchcock, parte 2 – um episódio sobre o verdadeiro farsante


Na primeira vez que fui ao CCBB-RJ esse ano, esbarrei com um senhor de uns setenta anos que me empurrou descaradamente no escuro da sala de cinema. Não satisfeito, o diabo que era o velho me rogou pragas como se eu fosse a dona do empurrão.
No dia 3 de julho, esse mesmo velhote de mal com a vida, interceptou uma amiga e eu, enquanto estávamos na fila para mais uma sessão de filmes do Hitchcock.
Bêbado e mal vestido, o grisalho meio careca e meio despenteado era a imagem viva de um senhorzinho decrépito saído de um filme de horror, cuja sabedoria não se deve duvidar:
- Olha pra mim, você me acha bonito? Eu sou muito feio!
- .... ??? ....
- Por que você gosta dos filmes dele (Hitchcock)? .... Ele é um farsante, ha ha ha, um farsante, entendeu?! Você não acha que ele é um farsante? É um farsante... Te provoca coisas que você não sente.
Das mulheres impostoras, a sedutora Madeleine (Corpo que Cai) talvez seja a mais incontestável, num páreo duro com Marnie e seguida de Marion (Psicose), que surpreende seus pares com um furto, uma fuga e um disfarce para se instalar no Bates Motel.
Das graciosas, temos Sra. Froy, a agente secreta disfarçada de governanta (Dama Oculta), Melanie (Pássaros) que conquista pela mentira travessa e Blanche (Trama Macabra) a farsa hilariante em criatura...


Dos sujeitos errados, anti-heróis adoráveis, lidera John Ballantine (Spellbound), personagem pelo qual nos apaixonamos com Dra. Constance, porque afinal de contas nem ele se reconhece diante da própria farsa.

Em Ladrão de Casaca, o impostor é John Robie, ou "Gato", quando o bon-vivant sobe aos telhados...
Temos também o mocinho Ted Spencer  (Sabotagem), dissimulado verdureiro que na verdade é o sargento por trás da prisão de Mrs Verloc, criminoso que chefia o sumário dos farsantes insensíveis. Assim também é Tony Wendice (Disque M), pois ainda que não forje máscaras, finge que não vê, repete o que não foi dito e simula o que sente, maquinando o assassinato da própria esposa.

Hitchcock tem muito filmes. É difícil nomeá-los continuamente. De qualquer forma, fácil é concluir que suas historias encenam mentiras, calúnias e vaidades. Seja por amor, como em Chantagem e Confissão, ou por conspiração, como em O homem que sabia demais.
Personagens falsantes, impostores e enganadores... e o sósia de Van Meer (O Correspondente Estrangeiro) como elementos causadores da ação fílmica.

Hitchcock é um farsante? Pois quem sabe mais, nós ou seus personagens? 
O suspense por vezes está no espectador e não na obra! Terror psicológico, curiosidade veemente e voyeurismo entusiasmante. O diretor é inocente pela mácula inverdade que filma, porém culpado pela imagens sensoriais emblemáticas e tramas que provocam solavancos. A espetacular revelação da verdade que pertence à história é também a intensa verdade com que dirige a câmera.

Farsante...? Farsante é você que se inclui no rolo da película, faz gracejos e celebra a elegância da trapaça, saindo solene do cinema... mas se te acusam de um crime, ha ha ha, tenho certeza de que não farás cerimônia, caro espectador.

Já o Hitchcock... Não. Ele não é um farsante! Mas, sim....  "ele provoca coisas que você não sente".

domingo, 21 de agosto de 2011

Sugestão de Leitura: O Cobrador, de Rubem Fonseca.

O Cobrador" reúne dez contos de Rubem Fonseca, autor que se confirma como um dos superlativos da prosa brasileira, desde a publicação "O Caso Morel". Nessa coletânea, Rubem Fonseca mantém uma linguagem objetiva e enérgica - própria de sua escrita, além de exprimir habilidade singular com uma forma narrativa curta e ágil. Sua temática envolve violência, crueldade e, de certa forma, patologia humana. Ao leitor resta a ansiedade na resolução dos enredos e um prazer fisiológico na leitura. 


Quando satisfaço meu ódio sou possuído por uma sensação de vitória, de euforia que me dá vontade de dançar — dou pequenos uivos, grunhidos, sons inarticulados, mais próximos da música do que da poesia, e meus pés deslizam pelo chão, meu corpo se move num ritmo feito de gingas e saltos, como um selvagem, ou um macaco.
Quem quiser mandar em mim pode querer, mas vai morrer. Estou querendo muito matar um figurão desses que mostram na televisão a sua cara paternal de velhaco bem-sucedido, uma pessoa de sangue engrossado por caviares e champãs. Come caviar/ teu dia vai chegar./ Estão me devendo uma garota de vinte anos, cheia de dentes e perfume. A moça do prédio de mármore? Entro e ela está me esperando, sentada na sala, quieta, imóvel, o cabelo muito preto, o rosto branco, parece uma fotografia. ( O Cobrador, p. 174-5)

sábado, 20 de agosto de 2011

Há muitas coisas bonitas que Renoir não enxergou

 
(Situação:) Belém, 15 minutos de atraso, CineEstação, amigos. 
(Cinegrafia:) Estrangeiros, línguas, legendas fragmentadas. O papel da Europa no século XXI. Questões políticas e culturais... (Objeção:) "É possível gostar de algo sem que possamos entendê-lo?".
Talvez aceitá-lo não conceitualmente, mas a partir de si mesmo, da forma como se mostra. Foi assim com Film Socialisme 
do Godard... “Coisas Como”, “Nossa Europa” e “Nossas Humanidades”. Tudo desorganizado em sua ordem. O que Godard quer me dizer?
Saí do cinema refletindo e numa frase impactante, penso: o verbo não é imagem. Mas qual é esse verdadeiro impacto? E que frase doida é essa, Mariana?
 Resultado de uma experiência em que as palavras são mínimas significações, em que a imagem se sobressai e se revela como pintura fotográfica e pronto. As palavras são "dizeres sobre" enquanto a imagem por si só já é o registro e assim se registra como.


Godard no fundo mostrou o poder do cinema, fazendo cinema.  Câmera mirando câmera. O diafragma, que é o olho, se fecha, capta... O poder da mais ínfima qualidade de imagem e da mais alta cor:
O cinema - ou a arte - permanece como a possibilidade de resistência última do sujeito, mesmo que este sujeito nos chegue aos cacos, aos estilhaços de quem imprime um mundo a voar diante dos olhos (ou, como um filme-pensamento, dentro da cabeça). A tela é uma só. O filme (no singular) é o último socialismo (no sentido político corriqueiro, mas também no "social" que lhe é radical) possível: o último momento de fé, de uma anulação silenciosa e ritualística no coletivo, mas ao mesmo tempo de um magnetismo absolutamente ativo entre dois olhares: a pessoa que olha pra tela e a tela que olha de volta. Godard, autocrítico de vocação, firma em Film Socialisme um pacto no qual os aforismos e os fragmentos categóricos se sabem apenas um possível começo de conversas. E, das conversas, algo de gigantesco pode surgir.
(fonte: http://www.revistacinetica.com.br/filmsocialisme.htm


Obs: rever esse filme vinte vezes.

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Um breve comentário sobre Psicose

Procuro um jeito para me concentrar e escrever com mais frequencia no blog, mas não encontro. Também não quero estar sempre justificando minha ausência por aqui, já que o propósito do blog é que eu tenha uma obrigação comigo mesma e não necessariamente com os bem vindos leitores e leitoras. E todos sabem o quanto obrigações são chatas.

Tenho um segundo texto e um terceiro em mente sobre o Hitchcock e a mostra no CCBB-RJ. Mas, sinceramente, já não tenho o mesmo pique para comentar porque muitas coisas aconteceram. No fundo, no fundo, sofro de indisciplina. Mas, só para não deixar assim tão vaga a minha experiência deixo aqui um video meu, gravado no Rio (RJ) e que fará parte do dossiê Hitchcock da APJCC, cuja vídeo-crítica sobre Pisicose foi gravada ontem em Belém (PA).

Falo a partir de duas pequenas cenas que considero importantes. E também a respeito de uma perspectiva que compara as personagens Marion (Psicose) e Melanie Daniels (Os Pássaros).

Contenha o riso,
rs

sábado, 16 de julho de 2011

Mostra Hitchcock, parte 1 – relato de experiência

Alfred Hitchcock esteve presente no CCBB do Rio de Janeiro entre 01 de junho e 14 de julho. Assistir à obra do grande diretor, o maior até então em minha opinião, traz não apenas o contato filme-espectador -  uma experiência estética,  mas a experiência espiritual de ver materializado em estilo e arte a perspectiva criadora de um grande cara. Grande cara!
A sua fisionomia e o seu humor peculiares são assinaturas caricatas, quase caligráficas também. Estar presente em cena, em seu próprio filme, ali no canto, representa muito mais que uma brincadeira com o telespectador, é uma diversão metonímica. O Grande cara pelo grande filme, sendo a parte do todo e o todo pela parte.

A programação foi aparentemente desenhada para o meu aproveitamento total. Mas, infelizmente, o clichê dos imprevistos que sempre acontecem provocou furos no meu roteiro e minha participação efetiva foi boicotada pelo tempo, clima, cansaço, manifestações na rua, mau trânsito e, principalmente, filas enormes (e a tal prioridade aos velhinhos que chegavam 10 minutos antes e conseguiam o (meu) lugar... lugar de quem havia chegado há muito tempo, com fome e sede e vontade de ir ao banheiro.

Mais de um mês. Exceto às segundas, fui todos os dias ao CCBB. Perdi aula, mas também perdi filme por causa de aula. Um conflito eterno sobre prioridades e prazer... e o que realmente vale a pena. O que realmente vale a pena? Atravessar de barca até Niterói, perdendo 40 minutos da minha vida, ou esperar 40 minutos em pé a próxima sessão da minha vida?

Película! Película. Película...
Filmes que eu nunca tinha visto. Filmes que vendo a segunda vez pareciam a primeira. Filmes que não importam a quantidade de vezes que se vê, sempre não se vê tudo, sempre algo escapa aos olhos do telespectador, ainda que não escapem aos olhos de Sir Alfred Hitchcock, o Grande cara.

Não foi apenas uma aula de cinema ou um apontamento para a importância da linguagem. Foi a submissão do meu olhar contra o olhar Dele, da minha perspicácia a favor da supremacia narrativa Dele. O meu prazer em detrimento do prazer Dele... foi óbvio. Hitchcock reviveu!

Grande cara, sou sua grande fã.

Maratona Odeon: Alfred Hitchcock

YEAAAAH! Os Pássaros, Disque M para matar e Psicose! Não dá pra dormir!!!









sábado, 28 de maio de 2011

Quem conta um conto aumenta um ponto

No período da Idade Média a palavra conto estava relacionada ao contar uma história, ou seja, um conto nada mais era do que um relato de acontecimentos. A tradição de narrar histórias, histórias que passaram de pessoa para pessoa, tornou-se importante pela sua dimensão utilitária e o ensinamento moral que muitas vezes a elas era atribuído. Nesse sentido, em sua origem, o conto traz semelhanças próprias ao que hoje conhecemos por fábula.

Os clássicos “contos de fadas” (ou “contos da carochinha”) são compilações de registros de narrativas orais, tradicionais entre os século XVI e XVIII, que com o passar dos tempos integraram em sua essência uma espécie de “moral” tal como a que se lê na versão de Chapeuzinho Vermelho do francês Charles Perrault:

Vemos aqui que as meninas, E sobretudo as mocinhas Lindas, elegantes e finas, Não devem a qualquer um escutar.E se o fazem, não é surpresa Que do lobo virem o jantar. Falo "do" lobo, pois nem todos eles São de fato equiparáveis. Alguns são até muito amáveis, Serenos, sem fel nem irritação. Esses doces lobos, com toda educação, Acompanham as jovens senhoritas Pelos becos afora e além do portão. Mas ai! Esses lobos gentis e prestimosos, São, entre todos, os mais perigosos.
Em sua origem, esses tipos de contos narravam acontecimentos hediondos, cenas de estupro e assassinatos,  semelhante à versão dos irmãos Grimm (ler aqui).

As versões de Chico Buarque (ler aqui) e Guimarães Rosa (ler aqui) nos remetem a essa já conhecida historia. Desde a leitura do subtítulo do conto de Guimarães, o leitor se encontra na posição de não apenas ler uma nova historia, mas de reler outra a qual esta se assemelha. Por isso “nova velha história”, uma  versão nova de algo que já conhecemos.

Trata-se, então, de um pacto de reconhecimento. A leitura se desenvolve com base na identificação de elementos presentes na estrutura narrativa, elementos que não são necessariamente idênticos, mas que exercem a mesma função. Por exemplo, a existência de personagens-chaves que desencadeiam as principais ações do enredo (como a mãe que pede à filha para levar doces a avó), ou a presença de um elemento símbolo que dá nome à personagem principal, “fita verde” e “chapeuzinho amarelo”. Sabemos que são  versões porque todas apresentam a mesma perspectiva dramática, com o mesmo conflito: a menina deve escolher entre dois caminhos e evitar encontrar o lobo. Entretanto, não se lê a mesma história, porque cada uma renova, a seu modo, a estrutura narrativa, possibilitando, inclusive, finais diferentes.

A diferença não se baseia apenas na alteração no enredo, mas também no plano da linguagem que cada autor expressa, como quando Guimarães faz uso da repetição de fonemas (aliteração) quando escreve “havia uma aldeia em algum lugar, nem maior nem menor, com velhos e velhas que velhavam”, ou quando Chico Buarque trabalha a ordem do discurso numa transformação do plano simbólico do nomear, em que a relação entre a linguagem e o acontecimento são análogas e metaforizadas no enredo: “LO BO LO BO LO BO LO BO LO BO LO BO LO BO LO BO LO BO LO BO LO" (lobo - bolo).

Nesse sentido, a literatura pode estar vinculada a uma concepção voltada à construção intertextual, em que as narrativas são eventos lingüísticos e literários cujo significado só existe em relação a textos já existentes.

Chapeuzinho Vermelho

(publicação relativa ao texto quem conta um conto aumenta um ponto)


Certo dia, a mãe de uma menina mandou que ela levasse um pouco de pão e de leite para sua avó. Quando a menina ia caminhando pela floresta, um lobo aproximou-se e perguntou-lhe para onde se dirigia.
- Para a casa de vovó - ela respondeu.
- Por que caminho você vai, o dos alfinetes ou o das agulhas?
- O das agulhas.
Então o lobo seguiu pelo caminho dos alfinetes e chegou primeiro à casa. Matou a avó, despejou seu sangue numa garrafa e cortou sua carne em fatias, colocando tudo numa travessa. Depois, vestiu sua roupa de dormir e ficou deitado na cama, à espera.
Pam, pam.
- Entre, querida.
- Olá, vovó. Trouxe para a senhora um pouco de pão e de leite.
- Sirva-se também de alguma coisa, minha querida. Há carne o vinho na copa.
A menina comeu o que lhe era oferecido e, enquanto o fazia, um gatinho disse: "menina perdida! Comer a carne e beber o sangue de sua avó!"
Então, o lobo disse:
- Tire a roupa e deite-se na cama comigo.
- Onde ponho meu avental?
- Jogue no fogo. Você não vai precisar mais dele.
Para cada peça de roupa - corpete, saia, anágua e meias a menina fazia a mesma pergunta. E, a cada vez, o lobo respondia:
- Jogue no fogo. Você não vai precisar mais dela.
Quando a menina se deitou na cama, disse:
- Ah, vovó! Como você é peluda!
- É para me manter mais aquecida, querida.
- Ah, vovó! Que ombros largos você tem!
- É para carregar melhor a lenha, querida.
- Ah, vovó! Como são compridas as suas unhas!
- É para me coçar melhor, querida.
-Ah, vovó! Que dentes grandes você tem!
-É para comer melhor você, querida.
E ele a devorou.

Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque

(publicação relativa ao texto quem conta um conto aumenta um ponto)


Era a Chapeuzinho Amarelo.
Amarelada de medo.
Tinha medo de tudo, aquela Chapeuzinho.
Já não ria.
Em festa, não aparecia.
Não subia escada, nem descia.
Não estava resfriada, mas tossia.
Ouvia conto de fada, e estremecia.
Não brincava mais de nada, nem de amarelinha.
Tinha medo de trovão.
Minhoca, pra ela, era cobra.
E nunca apanhava sol, porque tinha medo da sombra.
Não ia pra fora pra não se sujar.
Não tomava sopa pra não ensopar.
Não tomava banho pra não descolar.
Não falava nada pra não engasgar.
Não ficava em pé com medo de cair.
Então vivia parada, deitada, mas sem dormir, com medo de pesadelo.
Era a Chapeuzinho Amarelo…
E de todos os medos que tinha
O medo mais que medonho era o medo do tal do LOBO.
Um LOBO que nunca se via,
que morava lá pra longe,
do outro lado da montanha,
num buraco da Alemanha,
cheio de teia de aranha,
numa terra tão estranha,
que vai ver que o tal do LOBO
nem existia.
Mesmo assim a Chapeuzinho
tinha cada vez mais medo do medo do medo
do medo de um dia encontrar um LOBO.
Um LOBO que não existia.
E Chapeuzinho amarelo,
de tanto pensar no LOBO,
de tanto sonhar com o LOBO,
de tanto esperar o LOBO,
um dia topou com ele
que era assim:
carão de LOBO,
olhão de LOBO,
jeitão de LOBO,
e principalmente um bocão
tão grande que era capaz de comer duas avós,
um caçador, rei, princesa, sete panelas de arroz…
e um chapéu de sobremesa.
Finalizando…
Mas o engraçado é que,
assim que encontrou o LOBO,
a Chapeuzinho Amarelo
foi perdendo aquele medo:
o medo do medo do medo do medo que tinha do LOBO.
Foi ficando só com um pouco de medo daquele lobo.
Depois acabou o medo e ela ficou só com o lobo.
O lobo ficou chateado de ver aquela menina 
olhando pra cara dele,
só que sem o medo dele.
Ficou mesmo envergonhado, triste, murcho e branco-azedo,
porque um lobo, tirado o medo, é um arremedo de lobo.
É feito um lobo sem pelo.
Um lobo pelado.
O lobo ficou chateado.
Ele gritou: sou um LOBO!
Mas a Chapeuzinho, nada.
E ele gritou: EU SOU UM LOBO!!!
E a Chapeuzinho deu risada.
E ele berrou: EU SOU UM LOBO!!!!!!!!!!
Chapeuzinho, já meio enjoada, 
com vontade de brincar de outra coisa.
Ele então gritou bem forte aquele seu nome de LOBO 
umas vinte e cinco vezes,
que era pro medo ir voltando e a menininha saber 
com quem não estava falando:
LO BO LO BO LO BO LO BO LO BO LO BO LO BO LO BO LO BO LO BO LO
Aí, Chapeuzinho encheu e disse:
"Pára assim! Agora! Já! Do jeito que você tá!"
E o lobo parado assim, do jeito que o lobo estava, já não era mais um LO-BO.
Era um BO-LO.
Um bolo de lobo fofo, tremendo que nem pudim, com medo de Chapeuzim.
Com medo de ser comido, com vela e tudo, inteirim.
Chapeuzinho não comeu aquele bolo de lobo, 
porque sempre preferiu de chocolate.
Aliás, ela agora come de tudo, menos sola de sapato.
Não tem mais medo de chuva, nem foge de carrapato.
Cai, levanta, se machuca, vai à praia, entra no mato,
Trepa em árvore, rouba fruta, depois joga amarelinha,
com o primo da vizinha, com a filha do jornaleiro,
com a sobrinha da madrinha
e o neto do sapateiro.
Mesmo quando está sozinha, inventa uma brincadeira.
E transforma em companheiro cada medo que ela tinha:
O raio virou orrái;
barata é tabará;
a bruxa virou xabru;
e o diabo é bodiá.
                                 FIM
( Ah, outros companheiros da Chapeuzinho Amarelo: 
o Gãodra, a Jacoru,
o Barãotu, o Pão Bichôpa…
e todos os tronsmons).