sábado, 26 de novembro de 2011

Sublinhando o livro: Nadja, de Andre Breton




No que me diz respeito, mais importantes ainda que o encontro de certas disposições de coisas para o espírito, me parecem as disposições de um espírito em relaçã a certas coisas, duas espécies de dispoisções que regem por si mesmas todas as formas da sensibilidade.
p. 25


Tenho a intenção de narrar, à margem do relato que vou empreender, apenas os episódios marcantes de minha vida tal como posso concebê-la dora de seu plano orgânico, ou seja, na própria medida em que ela está confiada aos acasos, dos menores aos maiores e, refugando a ideia comum que dele faço, introduzir-me num mundo como que proibido, que é o das aproximações repentinas, das petrificantes coincidências, dos reflexos que vencem qualquer outro impulso mental, de acordes batidos como no piano, de clarões que fariam ver, mas ver de fato, se não fossem ainda mais rápidos que os demais.
p. 27


Espero, de todo modo, que a apresentação de uma série de observações dessa ordem e da que se segue seja de natureza a precipitar alguns homens na rua, depois de tê-los feito adquirir consciência, se não do nada, pelo menos da grave insuficiência de qualquer cálculo pretensamente rigoroso sobre si mesmos, de toda ação que exija uma aplicação permanente, e possa ter sido premeditada. De nenhum fato, por menor que seja, restará coisa alguma, se ele é verdadeiramente imprevisto. E não me venham depois disso, falar do trabalho, quer dizer, do valor moral do trabalho. Sou forçado a aceitar a idéia do trabalho como necessidade material, e nesse aspecto sou o mais favorável possível à sua melhor, à sua mais justa repartição. Que ele me seja imposto pelas sinistras obrigações da vida, vá lá, mas que me peçam para acreditar nele, reverenciar o meu ou o dos outros, jamais. Prefiro, de novo, caminhar na noite e pensar que sou aquele que caminha de dia. De nada serve estarmos vivos durante o tempo em que trabalhamos. O acontecimento que cada um de nós está no direito de esperar que seja a revelação do sentido de sua própria vida, acontecimento que eu talvez ainda não tenha encontrado, mas no caminho do qual me procuro, não virá ao preço do trabalho. Mas me antecipo, pois talvez seja aqui, acima de tudo, o que a seu tempo me fez entender e o que justifica, sem mais tardança, a entrada em cena de Nadja.
p. 62


O que Nadja faz em Paris, ela mesma se faz essa pergunta. Bem, à noite, lá pelas sete, ela gosta de estar num vagão de segunda classe no metrô. A maioria dos passageiros é gente saindo do trabalho. Ela se senta entre eles, procura descobrir no rosto deles o motivo de suas preocupações. Pensam necessariamente no que acabam de deixar até amanhã, só até amanhã, e também no que os espera à noite, algo que os desanuvia ou que os deixa ainda mais preocupados. Nadja fixa alguma coisa no ar: ‘Tem gente admirável’.


Mais emocionado do que gostaria de parecer, desta vez eu me zango: ‘Coisa nenhuma. Além do mais, não se trata disso. Essas pessoas não podem ser interessantes, já que suportam o trabalho, com ou sem todas as outras misérias. Como é que isso poderia elevá-las, se nelas a revolta, a mais forte, não está de todo? Naquele momento, eles estão sendo vistos, mas eles nem sequer a vêem. Odeio com todas as forças essa servidão que querem me fazer aceitar. Lamento que o homem esteja condenado a ela, que em geral não possa se ver livre dela, mas não é a dureza da pena que vai me dispor em seu favor: é, e só poderia ser, a veemência de seu protesto. Sei que no forno de uma fábrica, ou diante de uma dessas máquinas inexoráveis que impõem o dia inteiro, com alguns segundos de intervalo, a repetição do mesmo gesto, ou em qualquer outro lugar, sob as ordens mais inaceitáveis, ou na prisão, ou diante de um pelotão de fuzilamento, mesmo assim podemos nos sentir livres, mas não é o martírio que sofremos que cria essa liberdade. Eu quero que a liberdade seja uma permanente quebra de grilhões: contudo, para que essa quebra seja possível, constantemente possível, é necessário que as correntes não nos esmaguem, como fazem com muitos daqueles a quem se refere. Mas a liberdade também é, e humanamente  talvez ainda mais, uma sequência de passos mais ou menos longa, porém maravilhosa, que o homem pode dar fora dos grilhões. Acha que eles seriam capazes de dar esses passos? Terão pelo menos tempo para dá-los? Terão coragem suficiente? Pessoas admiráveis, me disse, está certo, admiráveis como aquelas que se deixaram matar na guerra, não é mesmo? Para encurtar, os heróis: são muitos infelizes e uns poucos imbecis. Quanto a mim, posso afirmar, esses passos são tudo. Aonde eles vão, eis a verdadeira questão. Acabarão por traçar um caminho, e quem sabe se nesse caminho não aparecerá o meio de libertar ou de ajudar a libertar os que não conseguiram seguir adiante? Só então será conveniente demorar um pouco, mas sem voltar atrás’. (Por aí se vê o que sou capaz de dizer sobre o assunto, por menos predisposto que esteja a tratá-lo de maneira concreta.) Nadja ouve sem tentar me contradizer. Talvez tenha querido fazer apenas a apologia do trabalho.
p. 68


A vida é diferente do que se escreve. Ela me retém por alguns instantes, para me dizer o que mais a atrai em mim. É, no meu pensamento, na minha linguagem, em todo o meu modo de ser, ao que parece, e este é um dos elogios que mais me sensibilizaram na vida, a simplicidade.
p. 70


Sinto, perto dela, que estou mais próximo das coisas que estão perto dela do que dela.
p. 86


"Não sou encontrável"
p. 89


"André? andré? ... Você vai escrever um romance sobre mim. Garanto. Veja só: tudo se esvai, tudo desaparece. É preciso que reste algo de nós... Mas isso pouco importa: você arranja outro nome: que nome, quer que eu diga, isso é muito importante. Tem que ser um pouco o nome do fogo, pois é sempre o fogo que aparece quando se trata de você. A mão também, mas é menos essencial que o fogo. O que vejo é uma chama que começa no punho, como aqui (com o gesto de fazer uma carta desaparecer) e que faz com que a mão se queimen e desapareça num piscar de olhos. Você vai encontrar um pseudônimo, latino ou  árabe. Promete. É indispensável."
p. 94


Ela repete várias vezes, escandindo cada vez mais as sílabas: "O tempo é implicante. O tempo é implicante porque tudo tem que acontecer na hora certa.".
p. 97


Poderia terminar aqui essa perseguição desvairada? Perseguição de quê, eu não sei, mas perseguição , para assim recorrer a todos os artifícios da seduçaõ mental. Nada - nem o brilho de metais incomuns como o sódio serem cortados - nem a fosforescência das pedreiras de certas regiões - nem o brilho do faiscar admiravel que sobe dos poços - nem o crepitar da madeira de um relógio de pêndulo que atiro ao fogo para que morra dando as horas - nem a atração a mais que o Embarque para Citera exerce ao verificarmos que, sob diversas atitudes, só um casal está em cena - nem a majestade das paisagens de represas - nem o encanto de minés, prédios em demolição: nada disso, nada do que para mim constitui minha luz própria, nada foi esquecido. Quem éramos nós diante da realidade, esta realidade que agora vejo deitada aos pés de Nadja, como m cão vadio? Em que latitude nós poderíamos estar bem, assim entregues ao furor dos símbolos, presas do demônio da analogia, nós que nos víamos como objetos de instâncias últimas, de atenções singulares, especiais? Vem daí o fato de que, projetados juntos, de uma vez por todas, tão longe da terra, nos curtos intervalos que o nosso maravilhoso esturpor permitia, termos podido trocar algumas impressões incrivelmente harmônicas por cima dos escombros fumegantes do velho pensamento e da vida sempiterna? Do primeiro ao ultimo dia tomei Nadja por um gênio livre, algo como um desses espíritos do ar que certas práticas de magia permitem fixar momentaneamente, mas jamais submeter.
p. 102

Seus olhos de avenca... (p. 102)
p. 104


"A garra do leão estreita o seio da vinha"
"Não sobrecarregar o pensamento com o peso dos sapatos"
p. 108


Era muito forte, afinal e muito fraca. como se pode ser, na convicção que sempre teve, e na qual a mantive por um tempo demais, ajudando-a demais, talvez, a avançar o passo: ou seja, que a liberdade, adquirida neste mundo ao preço de mil renúncias, as mais difíceis, exige que desfrutemos dela sem restrições enquanto nos for dada, sem consideração pragmática de nenhuma espécie, e isso porque a emancipação humana, concebida em definitivo sob a sua mais simples forma revolucionária, que não passa da emancipação humana sob todos os aspectos, entendamos bem, segundo os meios de que cada um dispõe, continua sendo a única causa digna a que servir.
p. 131


A bem conhecida ausência de fornteira entra a não-loucura e a loucura não me dispõe a conceder um valor diferente às percepções e idéias que são o fato de uma e de outra. Há sofismas infinitamente mais significativos e mais pesados que as verdades menos contestáveis: revogá-los por serem sofismas é ao mesmo tempo desprovido de grandeza e de interesse. Se eram sofismas, devo a eles pelo menos ter podido me lançar em mim mesmo, àquele que vem de mais longe a meu encontro, o grito, sempre patético, de "Quem vem lá?" Quem vem lá? É você, Nadja? É verdade que o além, todo o além esteja nesta vida? Nada escuto, Quem vem lá? Serei apenas eu? Serei eu mesmo?
p. 134

Um comentário:

Felipe disse...

Quando li Nadja me senti meio por fora do que estava acontecendo... essa semana, lendo um livro da Marguerite Duras me senti mais próximo do Breton, talvez por, de repente, ter me dado conta da grandeza de uma arte, ou de um fazer arte, que tem sua pretensão maior numa humildade de balbuciar algumas poucas impressões.
Livros como Nadja me dão a impressão de não quererem ser eternos e definitivos (como muitos modernistas querem ser, apesar de não admitirem) - querem apenas mostrar a necessidade de onde surgiram.

Não sei bem dizer o que quero dizer :p
mas acho que ainda vou ler esse livro de novo e de novo depois