quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Autógrafos do Ferreira Gullar

Ferreira Gullar esteve semana passada [01/08] na Livraria da Travessa para um bate-papo no auditório. O evento foi motivado por conta do último lançamento do poeta, o livro "A menina Claudia e o Rinoceronte", publicado pela Ed. José Olympio.

 

Os motivos que me levam a escrever esse texto são dois: primeiro, o fato e o registro de ter conseguido autografar meu livros {YEAH} ! Segundo, comentar a respeito das perguntas incabíveis direcionadas ao autor...
Gullar é extremamente crítico. Não só crítico de arte, mas do mundo. Ok, isto até justifica a curiosidade exagerada sobre a opinião do autor... Mas também não quer dizer que ele tenha que responder sobre política num evento sobre seu mais novo livro, voltado para o público infantil.
Na ocasião, criou-se um outro contexto exatamente assim:  "Gullar, e a comissão da verdade?"; "Gullar, o que você acha das manifestações?".

Eu não tive muitas oportunidades de me encontrar com escritores. Obviamente, gostaria de saber o que pensam sobre o mundo. Mas sou contra desvirtuar um evento sobre determinado livro, determinado autor, para focar em assuntos extraliterários, para acessar um discurso de alguém de maior "categoria" e tomar, talvez, para si, esse discurso. Poderiam ter perguntando tanta coisa, tanta sobre literatura...

Ferreira Gullar é desses poetas cheio de vertentes. Ele já escreveu de tudo sobre tudo. E tem uma grandeza tal qual Drummond, e melhor: ainda está vivo. Por que não se aproveitar disso? De fazer uma revisão sobre seus poemas antigos, já que seus livros estão sendo reeditados... Por que não comentar sobre essa ilustre capacidade que esse escritor tem de circular pela crônica poética, pela crônica de jornal, pela arte da colagem, etc, etc, etc.

De lembrança ligeira para esse texto, três poemas surgem, três poemas diferentes que eu gostaria de compartilhar com vocês e que mexeram comigo muito mais na releitura deles, em outras fases da minha vida, do que quando no primeiro contato:

O primeiro poema escolhido, conheci na escola, mas só na faculdade, ou dando aulas, compreendi que ele pode ser um dos principais emblemas do que projetava a poesia moderna brasileira. Antes, eu achava engraçada a dicção do eu-lírico que não fazia metáforas... Hoje ele me transparece, por além do questionamento sobre a função da poesia para a sociedade, como uma forma de entender o próprio fazer poético de Gullar, que se "espanta" (como ele mesmo diz) com coisas cotidianas e talvez óbvias.

Não há vagas

O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão.

O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras

– porque o poema, senhores,
está fechado: “não há vagas”
Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço

O poema, senhores,
não fede
nem cheira

O segundo poema escolhido, li também quando era bem mais nova... e continua representando bem a minha vontade de traduzir quem sou - meio barroca, meio indecisa (será? rs), meio a meio por inteira... o poema, não por menos, é intitulado "Traduzir-se" e até hoje quando o leio, sinto a mesma sensação "essa sou eu, sou eu, sou eeeeu"... e o fato de sentir que esse poema é meu, que é para mim, mesmo depois de tanto tempo, também faz essa releitura muito significativa.

Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir-se uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?

Por fim, fecho com o poema "Ao rés do chão", pois quando voltei ao livro "Na vertigem do dia", abri nessa página e me lembrou a viagem que fiz para Buenos Aires, os motivos que me levaram até lá... e, principalmente, há uma identificação por minha parte com esse sentimento de estar "fora do ângulo como um objeto que respira" (sentimento permanente) e esse verso {em negrito e sublinhado} que eu tatuaria em mim por significar qualquer coisa e todas as coisas, e essa coisa em mim, esse universo.

Sobre a cômoda em Buenos Aires
o espelho reflete o vidro de água de colônia
Avant la Fête (antes,
muito antes da festa), reflete
o vidro de Supradyn, um tubo
de esparadrapo,
a parede em frente, uma parte do teto.
Não me reflete a mim
deitado fora do ângulo como um objeto que respira.
Os barulhos da rua
não penetram este universo de coisas silenciosas.
Nos quartos vazios
na sala vazia na cozinha
vazia
os objetos (que não se amam),
uns de costas para os outros.

Um comentário:

Felipe disse...

Acho que lembro do primeiro poema de alguma aula de redação da oitava ou sétima série, quando eu tinha uma professora com bom gosto para Literatura. Não sei falar do Gullar porque é um desses caras que nunca me dispus a conhecer de verdade, mas esses três poemas e o que disseste sobre eles me fazem pensar que isso logo logo vai mudar :)